Black Mirror não é mais o mesmo. É difícil saber o quanto disso é ou não culpa da Netflix mas, seja pela transição ou mero acaso, a terceira temporada da série já apresentou uma queda considerável de qualidade em relação aos primeiros anos, e a quarta também tomou o caminho da queda livre. O que já foi uma ficção científica bem espertinha, hoje é uma sombra de si mesma, e parece ter dificuldades para emplacar um simples episódio consistentemente bom do começo ao fim.
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É especialmente estranho testemunhar essa catástrofe quando temos a confirmação de que o criador e principal roteirista da série continua sendo Charlie Brooker. A questão, então, é se a fonte secou, se rolou um ghost writing básico em algum momento, ou se os produtores da Netflix estão metendo mais as mãos na série do que gostaríamos. Seja qual for o caso, uma breve análise de cada episódio deixa evidente o péssimo saldo do ano quatro de Black Mirror:
USS Callister é, de longe, o episódio que começa de forma mais interessante na temporada, mas também é o que sofre o maior tombo por isso. Os primeiros cinco minutos são muito engraçados e criativos já que, sem aviso ou contexto, começamos vendo uma sátira de Jornada nas Estrelas, e o tudo é filmado como um legítimo sci-fi dos anos 1960-70. Estranhamente, pouco depois isso é abandonado e, a despeito dos trajes e atmosfera, a cinematografia toda ganha ares mais modernos mesmo nas cenas situadas fora do mundo real.
Isso, no entanto, é um problema minúsculo quando comparado aos conceitos alucinantes presentes no restante do episódio. Ainda é possível tirar alguma diversão dele caso você esteja disposto a aceitar a premissa insana e cientificamente incorreta de que, caso você pegue o DNA de alguém, as memórias da pessoa viriam junto com ele. Além disso, as regras internas do episódio são ainda piores: um personagem alega ser uma espécie de deus da dimensão, mas sua escala de poderes ora parece gigantesca, ora é limitada demais sem razões críveis para tanto. O final, preguiçoso, repete o mantra e clichê da série: quem mexe com realidade virtual está fadado a morrer.
As coisas melhoram um pouco em Arkangel, o hypado episódio dirigido por Jodie Foster. Tecnicamente competente, o grande problema da história é a sua gigantesca previsibilidade, que não reserva qualquer reviravolta ou surpresa até mesmo para o espectador mais desatento. Nos primeiros minutos a história sugere que a paranoia e eterna vigilância de uma mãe super zelosa pode trazer sérios problemas para sua filha. Uma hora de episódio depois, temos a exata confirmação disso, o que faz o episódio parecer uma grande perda de tempo. Ao menos ele ganha pontos de coerência interna, e provoca um debate mínimo sobre os limites do controle e privacidade.

Crocodile completa a trinca de episódios mais fracos da temporada transbordando potencial desperdiçado. Quem sabe se, ao invés de tornar a sua protagonista uma serial killer de motivações pessimamente fundamentadas (algumas, senão a maioria das mortes que ela provoca beiram o ridículo e aproximam a obra de uma comédia acidental), não seria melhor redirecionar o foco para o interessante e promissor arco da investigadora particular, que colhe relatos de cenas do crime a partir das memórias das vítimas?
A tecnologia em si parecia bastante interessante, mas fica subutilizada em uma trama completamente maluca com um desfecho que mais parecia uma piada mal executada do que as boas sacadas que Brooker sabia escrever tão bem. E nem se preocupe em abrir o google depois do episódio para pesquisar como funciona a memória de um porquinho da índia: claramente nem a equipe criativa da série teve interesse o bastante para fazer isso.
Após muita espera e sofrimento, Hang the DJ finalmente traz um sopro de qualidade à temporada, e é o único capítulo do ano que não faria feio caso inserido nas temporadas 1 e 2, onde seria considerado um episódio dos mais fraquinhos, mas ainda assim bem agradável e passável no geral.
A tecnologia que ele apresenta (uma espécie de Tinder ultra avançado) é bem explicada e encaixa bem com a trama e conceitos. O casal de protagonistas conseguiu estabelecer uma química muito boa, o que é ajudado pelos diálogos divertidos e delicados que lhes deram para interpretar. De certa forma, não é absurdo dizer que este é uma espécie de San Junipero (o melhor episódio do ano 3, disparado) desta temporada, pois, além da qualidade, também se trata de uma história de amor bem bonita e com um tom relativamente otimista no geral.
Metalhead é um caso muito curioso, o que não deixa de ser um elogio e uma crítica ao mesmo tempo. O fato é que ele é totalmente desligado dos outros quase 20 episódios que compõem a série. Filmado em preto e branco como um suspense cheio de perseguições e tensão, mais parece um exercício técnico e de ego do que um capítulo legítimo de Black Mirror. Como o recente Dunkirk de Christopher Nolan, se você tem interesse nos aspectos mais técnicos de uma obra, provavelmente vai conseguir apreciar e se divertir com Metalhead, a despeito do seu conteúdo inacreditavelmente raso. Ao menos o episódio é honesto sobre isso e em nenhum momento promete entregar mais do que realmente oferece.

Black Museum fecha a temporada como uma tentativa bem piorada de fazer um novo White Christmas (um dos, senão O melhor episódio de Black Mirror), com a ousada premissa de contar três pequenas histórias e, então, as interligar em um clímax que tire proveito de tudo que você viu e ouviu até então. O problema é que, enquanto White Christmas tinha uma premissa, execução e desfecho impactante e marcante, Black Museum é tremendamente medíocre em quase tudo que se propõe a fazer.
Ter apenas um episódio realmente bom em uma temporada de seis capítulos, após um terceiro ano já bem fraco e apenas levemente menos pior do que este, é um sinal de alerta para Charlie Brooker e para a Netflix. Talvez valha a pena encurtar um pouco mais a temporada e reaproximá-la do antigo modelo britânico, com apenas três episódios por ano, mas com todos eles mais polidos e bem trabalhados do que o material porco entregue na atual temporada.