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Controle total: a manipulação em Jogos Vorazes

A saga Jogos Vorazes despertou diferentes interpretações entre espectadores e leitores. Há quem a veja como uma aventura de ação, como um romance, como uma ficção científica distópica ou como um thriller político. A verdade é que é um pouco disso tudo. Mas a grande marca da série, que talvez passe desapercebida entre cenas de jovens se matando, é como esta é uma grande história sobre manipulação.

ATENÇÃO: este texto pode conter spoilers para quem não leu os livros e/ou assistiu aos filmes da série Jogos Vorazes! Leia por sua conta e risco!

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Talvez para quem apenas viu os filmes não seja tão evidente, até porque estes, apesar de bastante fiéis ao material original, focam muito mais na ação. Além disso, como os livros são narrados em primeira pessoa por Katniss, é muito mais fácil acompanhar os pensamentos e emoções da heroína. Em todo caso, tendo lido os livros ou apenas visto os filmes, o resultado é o mesmo: esse não é apenas mais um conto “indivíduo contra o estado”.

Para entendermos melhor a mensagem por trás dessa trilogia, precisamos analisar nossa personagem principal. Katniss Everdeen, por trás da imagem de garota de ação badass, não é uma heroína típica. Na realidade, é uma jovem bastante ingênua, até mesmo ignorante, que veio a ter ótimas habilidades de sobrevivência e uma empatia muito grande pelos outros. Katniss não compreende nem tem qualquer ambição de entender ou participar da política de Panem. A insatisfação dela com o governo opressor é a mesma de qualquer um de seus vizinhos, e não faz parte de seus planos mover um dedo para mudar as coisas. É uma personagem que se sentiria muito mais confortável se pudesse simplesmente se isolar do mundo.

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Mas, e sempre há um “mas” nessas histórias, o mundo de Katniss é totalmente transformado quando o nome de Prim, sua irmã mais nova, é selecionado no sorteio para participar da próxima edição dos Jogos Vorazes. Sem pensar duas vezes, e preocupada somente em salvar a vida de uma das pessoas que mais ama, Katniss se voluntaria para assumir o seu lugar e é a partir daí que a manipulação em todos os seus aspectos aparece como tema central da história.

Os próprios Jogos são o maior exemplo disso, um torneio brutal ao melhor estilo reality show projetado puramente para entreter a classe dominante enquanto reduz os dominados a tributos que podem ser sacrificados sem motivo algum, ao mesmo tempo que mostra aos distritos o total controle da Capital sobre suas vidas. Parafraseando o presidente Snow, não há maneira melhor de mostrar quem está no comando do que matar as suas crianças sem justificativa e sem que possam fazer nada a respeito.

Katniss é jogada nessa realidade e é a partir de então que ela efetivamente deixa de ser a dona de suas próprias ações para se tornar uma peça num tabuleiro de xadrez controlado por diversos personagens. Seu único desejo e motivação é permanecer viva e salvar aqueles que ama. Primeiro sua irmã, depois seus amigos também. Tentando alcançar isso, ela passa a ser influenciada de todas as maneiras possíveis. Perde sua integridade física e mental para o governo, que a obriga a participar dos jogos segundo suas próprias regras que podem mudar a qualquer momento, sendo obrigada a matar ou morrer. Perde sua inocência para os outros tributos, com quem precisa lutar ferozmente para sobreviver. Perde suas habilidades e talento para os organizadores dos jogos, que as exploram e usam estas a seu favor para tornar a disputa mais interessante. Perde sua própria identidade para o público e patrocinadores, se tornando a “Garota em Chamas” não por se ver assim, mas porque essa é a imagem que trará melhores resultados segundo outras pessoas. Perde sua vida pessoal sendo vigiada constantemente e sendo obrigada a assumir um romance puramente midiático com seu parceiro Peeta.

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Katniss não ficará alheia a tudo que lhe foi tirado, mas sua visão é limitada demais e o regime é muito opressor para ela conseguir ver a figura ampla. Ao longo da trama ela tentará diversas vezes se libertar das amarras tomando decisões que pensa serem suas, apenas para se prender ainda mais nos planos dos demais personagens, geralmente com resultados terríveis para si mesma. Quando ela pensa ter vencido a Capital em seu próprio jogo no final do primeiro livro, o governo dá o troco castigando todo o Distrito 12 e punindo não apenas ela, mas todos os vitoriosos anteriores, colocando-os novamente na arena de batalha, provando que eles nunca deixaram de ser propriedade do estado.

É a partir daí que a manipulação de Katniss entra em uma nova fase. De forma puramente acidental, ela se torna símbolo de uma revolução da qual nunca quis fazer parte nem compreende totalmente. Após ser resgatada de sua segunda participação nos Jogos Vorazes, em vez de estar livre ela passa a ser controlada diretamente pelo governo do Distrito 13 e indiretamente pela Capital, assumindo a figura do “Tordo” e tornando-se o rosto da revolta que se espalha por Panem.

Katniss assume essa missão muito mais por se sentir responsável por todos aqueles que estão morrendo numa luta que entraram por a verem como um símbolo de esperança do que por alguma ideologia específica. A verdade é que ela não se importa com a revolução e as trocas de poderes em si, mas se vê obrigada a assumir esse papel.

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Isso é reforçado pela forma como a guerra é retratada na história. A maioria das batalhas acontece longe do leitor, nós vemos pouca ação ocorrendo. A guerra que nos é mostrada é a guerra de propagandas, de influência, midiática. Nós vemos os dois lados desesperadamente tentando criar a melhor mensagem, tentando alcançar o maior número de pessoas e dizer que o seu lado que é o vencedor, pouco importando se isso reflete os fatos ou não. É uma corrida para ver quem manipula melhor a população. É nesse cenário que Katniss vira uma arma de guerra, não com seu novo arco com flechas explosivas, mas com suas participações nos vídeos de propaganda do Distrito 13. Ao mesmo tempo, a manipulação aparece em sua forma física e psicológica quando a Capital usa condicionamento através de veneno para fazer lavagem cerebral em Peeta para atingir Katniss.

A heroína não tem qualquer controle sobre essa situação. Sua influência pessoal na guerra é nula, já que suas participações em batalha são poucas e em lugares não decisivos e o Distrito 13 é quem edita e decide o que será mostrado para quem, enquanto a Capital utiliza sua própria mídia e força policial para esconder dos seus habitantes a gravidade da situação. A nova motivação de Katniss, vingar-se do presidente Snow, é usada pelos dois lados da disputa para controlá-la.

Quando mais uma vez ela tenta quebrar as regras que lhe foram impostas e parte para a Capital prestes a ser tomada pelos rebeldes sem permissão, na esperança de ela mesma acabar com Snow, logo cai mais uma vez nas garras de quem realmente está no poder, provocando indiretamente a morte de seus amigos para entretenimento dos espectadores, de um lado, ou sendo usada como mártir, do outro.

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Quando ela finalmente chega razoavelmente perto de cumprir seu desejo e parece que teremos o confronto final, a história nos relembra com um tapa na cara que em momento algum Katniss esteve no controle e que essa nunca foi a sua luta. A Capital cai não pelas suas mãos, mas pelas mãos do exército rebelde que teria chegado nesse resultado ela estando viva ou não. E, na cena mais significativa e importante de toda a trilogia, Katniss perde tudo. Lembre-se, o único objetivo de Katniss era proteger a irmã. Foi por isso que ela entrou nos Jogos Vorazes. Foi assim que ela virou o Tordo. Era tudo que ela queria, o que ela mais lutou para conseguir e um dos motivos pelos quais ela “aceitou” ser tão usada e manipulada. E então, sem aviso, e graças a uma bomba jogada pelos seus próprios “aliados”, a sua irmã Primrose Everdeen encontra uma terrível e violenta morte. Os rebeldes venceram, mas Katniss perdeu. A morte de sua irmã representa a inutilidade de suas ações, que serviram aos outros mas não a si mesma.

A perda da pessoa que ela mais amava e mais queria proteger talvez faça Katniss perceber o real absurdo de toda a sua situação de forma mais ampla. Ela finalmente tem a certeza de que o resultado da guerra não é liberdade para todos, mas sim uma troca das mãos que controlam as marionetes. O novo regime não tem motivos para ser menos opressor que o anterior. É isso que leva Katniss a abdicar de seu “direito” de matar o presidente Snow e em vez disso acertar uma flecha no peito da presidente Coin do Distrito 13.

Se esse último ato de rebeldia de Katniss finalmente trouxe alguma liberdade para Panem, ou se foi apenas mais um truque utilizado pelos reais detentores do poder, fica a critério do espectador decidir. Mas a cena final da saga indica que a heroína nunca pode se recuperar. A morte, para a personagem de Katniss, seria uma espécie de liberação e rendição. Mas não há saídas fáceis em Jogos Vorazes. O que vemos no final (dos livros, os filmes mostram uma versão muito mais leve) é uma Katniss ainda atormentada pelos anos de conflito, casada com um Peeta que nunca conseguiu se recuperar totalmente dos danos da lavagem cerebral que sofreu e que pinta retratos de mortos como espécie de terapia pessoal, vivendo nos escombros do que já foi o Distrito 12 em exílio forçado e tida como louca pelo resto do país. É uma heroína que parece sofrer de um grave estresse pós-traumático, que tem pesadelos constantes e tem dúvidas de sua capacidade de ser mãe de seus dois filhos pequenos. Katniss, em sua liberdade, continua sendo controlada pelos fantasmas do passado.

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