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Crítica: Anomalisa é um filme vivo, mesmo sem nenhum ser humano

Se você ainda não viu o filme, prepare-se para 90 minutos de puro estranhamento. Ou, se já viu, já sabe que estou sendo sincera, não é mesmo?

Vamos começar pelo trailer:

Vendo essas imagens, não há muito o que captar da história a ser contada. Percebe-se apenas que o boneco de cabelo grisalho é o personagem principal, que há uma dublagem impecável e que o tema do filme é o ser humano, a espécie que tem um exemplar único de si mesma a cada nascimento que acontece por aí.

O trailer fez muito bem em “esconder o jogo” dessa forma. Assim, o convite só será efetivo para quem quer ver um filme que não quer ser só um filme.

Anomalisa passa num piscar de olhos e tira o espectador da zona de conforto hollywoodiana porque não entrega nada mastigado em suas cenas. Alguns chamam isso de arte, outros de complexidade, mas é assim que as coisas são. O segredo para entrar na atmosfera do filme é nos deixar levar e assumir por completo o olhar egocêntrico de Michael Stone, palestrante motivacional ovacionado pelos profissionais do atendimento ao cliente que chega em uma cidade americana para realizar apenas mais um discurso, mas é surpreendido pelo extraordinário, ou seja, Lisa, algo fora do comum, de fato.

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Como não dá para prosseguir com a análise que nem começou sem contar o filme, aí vai o SPOILER ALERT!

 

DAQUI PRA FRENTE, CENAS DO FILME SERÃO REVELADAS.

 

Repare no encaixe do rosto de Michael. Todos os bonequinhos de silicone (principais e coadjuvantes) possuem esse tipo de mecanismo que interliga suas pecinhas. Demorei um pouco para entender que nem todos usavam óculos de grau, confesso… Mas só levei um tempão para tirar essa conclusão porque isso foi estrategicamente pensado por Charlie Kaufman, maestro desta obra. Outra característica que todos têm em comum é a voz. Nada contra mulheres com vozes graves, mas percebia-se que havia uma predominância do mesmo timbre masculino em todos os personagens, inclusive os femininos, todo mundo falando com a mesma voz!

Somando isso ao fato de que Michael não é um ser humano sociável, é nítido que há algo de errado acontecendo com ele. A perturbação que esse personagem sente com o conteúdo da carta de sua ex (ela aparece no trailer como se fosse um fantasma), mesmo que atualmente seja casado e tenha um filho, é o ponto de partida, o primeiro fio do novelo emaranhado que o filme entrega.

Tudo o que estranhamos durante o filme não é erro ou desatenção da equipe de produção. São códigos que precisam ser desmistificados para que se possa traduzir a mente de Michael. Apesar das palavras de seu discurso o qual foi resumido no trailer, ele não consegue enxergar o que cada pessoa tem de único quando suas vidas se cruzavam, até o momento em que encontra Lisa, sua anomali(s)a, a única que se mostra diferente de todos por fora e por dentro.

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Lisa é a típica garota que se nivela por baixo em todos os aspectos. Se diz gorda, desinteressante, feia e não acredita que alguém possa se interessar por ela, mesmo que isso seja repetido mais de três vezes e demonstrado através de sutilezas. Aí você pode pensar “ah, mas isso não é ser diferente“. É que Michael não reparou em nada disso, pelo contrário. A voz de Lisa foi a característica que fez com que ele se encantasse por ela e por mais ninguém.

Todos esses componentes justificam o fato de serem usados bonecos em stop-motion com dublagem. Eles são ferramentas perfeitas para deixar a imagem cada vez mais parecida com o que Michael pensa e enxerga do mundo ao seu redor: todo mundo é praticamente igual, só Lisa ganha destaque, tanto no corpo quanto na voz. Como “perdemos” a referência da face humana real, nos deparamos com bonecos e vozes estrategicamente postos para funcionar de acordo com a mensagem que o filme quer passar.

A partir do encontro do casal, presenciamos diálogos incrivelmente reais e com um timing impressionante… por um momento, até nos esquecemos que as cenas são feitas por bonecos. Só nos lembramos disso quando há um nu frontal deles com direito a uma cena de sexo singela e delicada. E como num passe de mágica, poucas horas depois de um “ataque” do inconsciente de Michael através de um pesadelo, esse amor tão efêmero e natural se desmanchou…

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Como o filme retrata a convivência e pensamento humano de Michael, Lisa se torna mais uma pessoa na multidão de iguais que ele conhece. Sua feição muda, sua voz muda… Ela percebe a reação de desgosto que Michael sente por estar com “outra Lisa”, mas como não tem o controle da mente de seu amado, se torna refém do transtorno dele.

Depois disso, só nos resta esperar e assistir a resolução de cada ponta solta: Michael voltando para casa totalmente contra sua vontade, Lisa escrevendo uma carta para ele assumindo a posição de “nova ex”, o discurso desastroso frente à uma plateia cheia de expectativa…. E a cereja do bolo: o take final, uma imagem que diz tanto, mas tanto, mesmo sem usar nenhuma palavra sequer. Temos, pela primeira e única vez, a visão do mundo sem o filtro de Michael.

Intrigada com essa última imagem antes dos créditos, busquei na internet informações sobre as referências que captei no filme. Uma delas foi determinante para continuar desvendando quem era Michael Stone. Isso não foi dito, mas a conclusão só pode ser uma: ele tem síndrome de Fregoli.

“A Síndrome de Fregoli é um transtorno psicológico que leva o indivíduo a acreditar que as pessoas à sua volta são capazes de se disfarçar, alterando a sua aparência, roupas ou gênero, para se fazerem passar por outras pessoas. Por exemplo, um paciente com Síndrome de Fregoli pode acreditar que o seu médico é na realidade um dos seus familiares mascarados que tenta persegui-lo.”

Para quem não se lembra, Fregoli era o nome do hotel no qual Michael se hospedou, local no qual boa parte do filme se passa.

Esse é o diferencial de Anomalisa, um filme que não precisa se explicar para ser entendido. São muitas informações por todos os cantos, somente os olhos mais treinados e acostumados com esse tipo de filme conseguirão acompanhar sua evolução. A vontade de vê-lo de novo existe, mas o medo de enxergar com mais nitidez toda a crítica que o filme escancara nas telonas é apavorante.

 

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